Muito advogados, perseguindo a satisfação de créditos em favor de seus clientes em execuções e cumprimentos de sentença, creem que o IDPJ é um instituto comum e de simples concessão.
Diz-se isto porque muitos prematuramente buscam a satisfação de tais créditos através do IDPJ, após a constatação de mera ausência de bens ou indícios de dissolução irregular, requerendo que as medidas judiciais sejam direcionadas contra o patrimônio pessoal dos sócios das pessoas jurídicas devedoras.
No entanto, a realidade é que o IDPJ se trata de uma medida excepcional extremamente gravosa, jamais podendo ser concedida de maneira leviana pelo Juízo, entendendo a jurisprudência, inclusive, que a comprovação de ausência de bens ou de dissolução irregular não são suficientes para sua concessão.
Para melhor compreensão do tema, serão abordados a seguir alguns detalhes acerca da personalidade jurídica, contudo, desde logo vale enfatizar que desconsiderá-la nunca é tarefa fácil, demandando farta documentação probatória, argumentação coerente e preenchimento dos requisitos doutrinários e jurisprudenciais.
Primeiramente, vejamos o teor dos artigos 40, 41 e 44 do Código Civil, os quais dispõe que as pessoas jurídicas podem ser de direito público interno/externo ou de direito privado:
Art. 40. As pessoas jurídicas são de direito público, interno ou externo, e de direito privado.
Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:
I – a União;
II – os Estados, o Distrito Federal e os Territórios;
III – os Municípios;
IV – as autarquias, inclusive as associações públicas; (Redação dada pela Lei nº 11.107, de 2005)
V – as demais entidades de caráter público criadas por lei.
Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado:
I – as associações;
II – as sociedades;
III – as fundações.
IV – as organizações religiosas; (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)
V – os partidos políticos. (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003)
VI – as empresas individuais de responsabilidade limitada. (Incluído pela Lei nº 12.441, de 2011) (Vigência)
O mesmo Código dispõe, em seus artigos 45, 985 e 1.150, que a existência legal da pessoa jurídica se inicia após a devida inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, no caso as Juntas Comerciais quando falamos no empresário e nas sociedades empresariais.
Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
Art. 985. A sociedade adquire personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos constitutivos (arts. 45 e 1.150).
Art. 1.150. O empresário e a sociedade empresária vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, e a sociedade simples ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, o qual deverá obedecer às normas fixadas para aquele registro, se a sociedade simples adotar um dos tipos de sociedade empresária.
Vale ter muita atenção neste quesito, pois a legislação dispõe claramente que a separação do patrimônio pessoal dos sócios do patrimônio da sociedade somente se concretiza após o referido registro.
Esse separação é, sem dúvidas, o motivo mais importante na tomada de decisão que leva indivíduos a constituírem sociedades empresariais, pois frente aos enormes valores monetários e riscos envolvidos para se tornar um empreendedor, é possível evitar que o fracasso da sociedade atinja diretamente o patrimônio pessoal de seus sócios.
Os legisladores sabiamente conferiram essa proteção às pessoas jurídicas, vez que sem ela, em um ambiente extremamente arisco para negócios como o Brasil, o número de empreendedores seria consideravelmente menor e a economia restaria prejudicada, pois nem todos estão dispostos a colocar seu patrimônio pessoal em jogo na busca do sonho que é empreender.
Podemos dizer então que um dos benefícios da personalidade jurídica é garantir a autonomia da sociedade empresarial, tornando-a independente de seus sócios e vice-versa, o que é favorável não só aos sócios, mas à própria sociedade civil e à economia, que ganham mais empreendedores, inovações e soluções.
Ocorre que, na prática, esta vantagem infelizmente favorece a prática de fraude contra credores, visto que, conforme já exposto, as dívidas e obrigações da empresa, em regra, não podem ser direcionadas contra o patrimônio pessoal de seus sócios.
Então, o que fazer quando se verifica que a pessoa jurídica não possui quaisquer bens ou valores suficientes para satisfazer seus créditos? E mais importante ainda, o que fazer quando se verifica que os sócios estão se valendo da personalidade jurídica para evitarem o cumprimento das obrigações que assumiram?
É aí que surge a possibilidade de se instaurar o IDPJ, que visa coibir eventuais abusos, bem como garantir o pagamento de credores.
Com o objetivo de evitar o abuso do direito de autonomia patrimonial e seguindo a teoria de desconsideração da personalidade jurídica – disregard doctrine, o IDPJ foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro no artigo 50 do Código Civil:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019).
Existem duas grandes teorias sobre o instituto:
- Teoria Maior – a desconsideração, para ser deferida, exige a presença de dois requisitos: o abuso da personalidade jurídica + o prejuízo ao credor. Essa teoria foi adotada pelo art. 50 do CC/2002;
- Teoria Menor – a desconsideração da personalidade jurídica exige um único elemento, qual seja, o prejuízo ao credor. Essa teoria foi adotada pela Lei nº 9.605/1998 (danos ambientais) e pelo art. 28 do Código de Defesa do Consumidor.
O Código Civil, em seu artigo 50, adotou a Teoria Maior, conforme entendimento pacífico jurisprudencial:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INVIABILIDADE. INCIDÊNCIA DO ART. 50 DO CC/2002. APLICAÇÃO DA TEORIA MAIOR DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO DESVIO DE FINALIDADE OU DE CONFUSÃO PATRIMONIAL. PRECEDENTES. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. No caso em que se trata de relações jurídicas de natureza civil-empresarial, o legislador pátrio, no art. 50 do CC de 2002, adotou a teoria maior da desconsideração, que exige a demonstração da ocorrência de elemento objetivo relativo a qualquer um dos requisitos previstos na norma, caracterizadores de abuso da personalidade jurídica, como excesso de mandato, demonstração do desvio de finalidade (ato intencional dos sócios em fraudar terceiros com o uso abusivo da personalidade jurídica) ou a demonstração de confusão patrimonial (caracterizada pela inexistência, no campo dos fatos, de separação patrimonial entre o patrimônio da pessoa jurídica e dos sócios ou, ainda, dos haveres de diversas pessoas jurídicas). 2. A mera demonstração de insolvência da pessoa jurídica ou de dissolução irregular da empresa sem a devida baixa na junta comercial, por si sós, não ensejam a desconsideração da personalidade jurídica. Precedentes. 3. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ – AgInt no AREsp: 472641 SP 2014/0026029-4, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 21/02/2017, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/04/2017).
O IDPJ também é abordado pelo Código de Processo Civil, em seus arts. 133 a 137, sendo válido de menção o teor do art. 134, §4º:
Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.
- 1º – A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.
- 2º – Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.
- 3º – A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º.
- 4º – O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.
Assim, sempre que os sócios da empresa tentarem fazer uso dos seus privilégios de personificação para cometerem fraudes, será cabível a instauração de IDPJ.
Deve-se observar que, conforme previsto no Código Civil, o IDPJ sempre deverá ser submetido à análise do Poder Judiciário, sendo responsabilidade exclusiva do Juiz a análise de seu cabimento, o que somente ocorre quando comprovada a prática comportamentos ilícitos ou incompatíveis com a legislação.
Neste sentido, temos dois requisitos claros que devem ser comprovados pela parte que instaura o IDPJ, ambos caracterizadores de abuso da personalidade jurídica: confusão patrimonial e desvio de finalidade.
A confusão patrimonial ocorre quando se comprova que não há separação entre o patrimônio dos sócios e o patrimônio da sociedade empresarial, sendo certo que se os próprios sócios não tem respeito pela autonomia patrimonial da sociedade, não há motivo para que o Juízo e o credor a respeitem.
O desvio de finalidade, por sua vez, ocorre quando fica demonstrado o dolo (intenção) dos sócios em cometer fraudes e lesarem credores ou terceiros, como, por exemplo, assumir dívidas que jamais tinham intenção de pagar, se apropriar dos valores pessoalmente e dissolver a sociedade irregularmente.
Para maior clareza, faz-se necessário observamos a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que depois de muito debate já encontrou clareza no que se refere ao instituto do IDPJ:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. REQUISITOS. AUSÊNCIA. REEXAME. FUNDAMENTOS. SÚMULA Nº 7/STJ. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica a partir da Teoria Maior (art. 50 do Código Civil) exige a comprovação de abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pelo que a mera inexistência de bens penhoráveis ou eventual encerramento irregular das atividades da empresa não justifica o deferimento de tal medida excepcional. 3. Na hipótese, inviável rever as conclusões das instâncias ordinárias quanto ao preenchimento dos requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica da empresa sem a análise dos fatos e das provas da causa, o que atrai a incidência da Súmula nº 7/STJ. 4. Agravo interno não provido. (STJ – AgInt no AREsp: 1679434 SP 2020/0061257-7, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 21/09/2020, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/09/2020).
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. REQUISITOS AUSENTES. DISSOLUÇÃO IRREGULAR E AUSÊNCIA DE BENS PENHORÁVEIS. INSUFICIÊNCIA. PRECEDENTES. NÃO PROVIMENTO. 1. A jurisprudência do STJ firmou o entendimento no sentido de que a existência de indícios de encerramento irregular da sociedade aliada à falta de bens capazes de satisfazer o crédito exequendo não constituem motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica, eis que se trata de medida excepcional e está subordinada à efetiva comprovação do abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. 2. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ – AgInt no AREsp: 1712305 SP 2020/0137044-4, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 12/04/2021, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 14/04/2021).
Diante do exposto, verifica-se que o provimento do IDPJ não é tarefa fácil, pois se trata de medida excepcional e gravosa, devendo se demonstrar com clareza a ocorrência de abuso da personalidade jurídica através de desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Sabemos ainda que a administração de sociedades empresariais não é tarefa fácil, envolvendo sócios com diferentes personalidades e valores pessoais, sendo que muitas vezes apenas um deles age de má-fé, gerando repercussões para todos.
No entanto, a jurisprudência sabiamente prevê que somente podem ser tidos como responsáveis com seu patrimônio pessoal os sócios que de fato contribuíram com a prática dos atos caracterizados do abuso da personalidade:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. HERDEIRA. SÓCIO MINORITÁRIO. PODERES DE GERÊNCIA OU ADMINISTRAÇÃO. ATOS FRAUDULENTOS. CONTRIBUIÇÃO. AUSÊNCIA. RESPONSABILIDADE. EXCLUSÃO. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cuida-se, na origem, de ação de indenização por danos morais e materiais na fase de cumprimento de sentença. 3. A questão central a ser dirimida no presente recurso consiste em saber se a herdeira do sócio minoritário que não teve participação na prática dos atos de abuso ou fraude deve ser incluída no polo passivo da execução. 4. A desconsideração da personalidade jurídica, em regra, deve atingir somente os sócios administradores ou que comprovadamente contribuíram para a prática dos atos caracterizadores do abuso da personalidade jurídica. 5. No caso dos autos, deve ser afastada a responsabilidade da herdeira do sócio minoritário, sem poderes de administração, que não contribuiu para a prática dos atos fraudulentos. 6. Recurso especial não provido. (STJ – REsp: 1861306 SP 2017/0131056-8, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 02/02/2021, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/02/2021).
Diante de todo o exposto, devemos reconhecer que a personalidade jurídica consiste em um instituto legal de extrema importância, que contribui com o desenvolvimento de empreendedores, inovações e soluções, sendo indispensável para a prosperidade da economia brasileira.
No entanto, há de se reconhecer também que eventuais abusos da personalidade jurídica devem ser efetivamente combatidos, através do uso do IDPJ, desde que presentes os elementos probatórios da ocorrência de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, o que não é tarefa fácil e exige extrema dedicação e estudo dos advogados envolvidos no processo.
Matéria elaborada por
Dr. Felipe Hauagge, OAB/PR 82056.